ABCE na Mídia
Distribuidoras de energia disputam R$ 60 bi que aliviariam conta de luz
Postado em: 19/04/2022
Valor equivale à devolução de tributos pagos pelos consumidores e é reivindicado pelas empresas
Alexa Salomão
A agência que regula o setor de energia elétrica, a Aneel, discute o destino de mais de R$ 60 bilhões em créditos tributários que podem ser usados para aliviar a conta de luz dos brasileiros. O processo que trata do tema, porém, praticamente parou há um ano, na fase de audiências públicas.
O maior impasse é definir a parcela das distribuidoras de energia nessa gigantesca quantia.
As distribuidoras afirmam que sustentaram a batalha jurídica que garantiu esses créditos tributários. Das 53 distribuidoras em operação, 49 entraram na Justiça. Assim, elas entendem que têm direito aos créditos. Como a agência já vetou essa alternativa, pedem uma boa compensação por questionarem uma tributação considerada inadequada, e mais um adicional para cobrir os custos processuais.
A entidade que representa as empresas, a Abradee, não chega a cravar um montante, sob o argumento de que há diferentes critérios em debate. No entanto, sugestões apresentadas à agência e estimativas do mercado sinalizam que o valor desses dois itens oscilaria, por baixo, na casa dos R$ 20 bilhões, ou seja, ao menos um terço do total.
Três exemplos ilustram quantos bilhões estão em jogo no universo empresarial. Em valores ajustados a julho de 2021, a atualização mais recente, os consumidores da distribuidora Enel, que atende São Paulo, pagaram a mais em tributos, que agora têm a receber, R$ 7,5 bilhões. Os consumidores da Light, do Rio de Janeiro, R$ 6,4 bilhões. Os da mineira Cemig, R$ 6,2 bilhões.
AGÊNCIA QUER TARIFA MAIS BARATA
A questão em debate na Aneel é que reconhecer os créditos tributários para as distribuidoras significa perder a oportunidade de usá-los para reduzir a conta de luz —e o efeito da contabilização desses créditos faz muita diferença.
Com pandemia, queda na renda e alta na conta de luz, a agência criou uma alternativa para usar os créditos na redução das tarifas mesmo antes de tomar uma decisão final. Um despacho permitiu que, em caso de aumento expressivo da tarifa, é possível usar até 20% dos créditos previstos.
Eles voltam para a distribuidora, que fez o recolhimento, e são reunidos para reduzir a tarifa na data em que ocorre o reajuste daquela distribuidora. Parcelas já foram usadas em 2020 e 2021, e outra leva será liberada neste ano.
Acompanhamento realizado pela TR Soluções, empresa que coleta e analisa dados do setor de energia, consegue mostrar o resultado prático. A tarifa, na média, subiu 8,04% no ano passado. Sem a contabilização dos créditos tributários, a alta teria sido de 12,19%, uma diferença de 4,15 pontos percentuais.
Gabriel Lemos, analista de regulação da empresa, explica que não é possível projetar o efeito geral neste ano, mas que ele tende a ser maior por questões conjunturais. Em 2022, a conta de luz vai incluir parte do custo extra criado pelo uso das térmicas durante a seca no ano passado e vai pesar no orçamento familiar.
O efeito dos créditos tributários sobre a tarifa da Light, do Rio de Janeiro, cujo reajuste anual ocorre em março, é um exemplo da tendência deste ano. Foi possível utilizar pouco mais de R$ 1 bilhão em créditos tributários. A tarifa de energia residencial teve alta de 15,53%. Sem o uso dos créditos, a alta teria sido de 21,4%.
A Enel já utilizou R$ 1,1 bilhão dos créditos para reduzir a conta de luz, e a Light, R$ 1,4 bilhão.
Segundo a empresa fluminense, a economia na tarifa com o uso dos créditos ficou em cerca de 12%. A estimativa é que, nos próximos anos, sejam repassados outros R$ 2 bilhões.
A Cemig usou cerca de R$ 2,3 bilhões que, afirma a empresa, possibilitaram que a tarifa residencial não sofresse reajustes em 2020 e 2021, no que se refere à parcela de distribuição de energia.
O uso dos créditos na Cemig mobilizou até o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Em maio de 2020, quando ainda não era presidente do Senado, ele participou da reunião da Aneel dedicada a discutir o reajuste tarifário da Cemig.
Pediu que os créditos fossem usados para evitar o reajuste de 4% na conta de luz que já estava previsto naquele ano e reforçou a posição de que eles pertenciam aos consumidores.
“Os mais de R$ 6 bilhões em créditos não pertencem à Cemig, pertencem aos consumidores mineiros, e é fundamental que sejam realizados, repito, não em favor da Cemig, mas dos consumidores”, disse Pacheco. A agência aceitou a sugestão.
CRÉDITOS FORAM DEFINIDOS NA TESE DO SÉCULO
Os créditos que alimentam essa discussão são herança de outro debate intenso. Foram definidos a partir de uma polêmica tributária que durou 20 anos e chegou a ser chamada de tese do século. Trata-se da cobrança de ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.
O debate só teve fim após julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal). Em 2017, a corte considerou a cobrança indevida, com os detalhes finais da sentença sendo apresentados em 2021. Não há dúvida. O governo deve ressarcir os contribuintes.
No caso da energia, a cobrança do tributo sempre recaiu na conta de luz e foi paga pelo consumidor. Assim, a Aneel assumiu, em março de 2020, a discussão sobre o ressarcimento. Uma consulta pública foi aberta no começo de 2021. Agentes do setor enviaram suas manifestações até o fim de março do ano passado. Foi aí que o embate com as distribuidoras se agigantou.
Nas manifestações, eles chegaram a defender o direito de ficar com a maior parte dos créditos. Apresentaram regras alternativas para definir o prazo de validade dos créditos tributários para os consumidores.
Pela regra usual, quando uma questão tributária desse tipo é pacificada no STF, quem já tinha ação garante o direito de receber todos os valores pagos a mais, a contar dos cinco anos anteriores à data do início do processo judicial até o ganho na Justiça, o chamado transitado em julgado.
As distribuidoras não entraram na Justiça ao mesmo tempo. O processo da Light, por exemplo, teve início nos anos 1990. O da Cemig, em 2003. Cada uma tem uma data, mas esse prazo vale para todas.
Ocorre que, no entendimento dos advogados das distribuidoras, essa regra não é aplicável aos consumidores. Alegam que eles foram inertes, e que a maioria não reclamou a cobrança a maior. Foram as distribuidoras que brigaram na Justiça, ganharam a causa e são donas dos créditos na Receita Federal.
Assim, afirmam, é preciso estabelecer um prazo dentro do qual o consumidor teria direito a reclamar e receber os créditos. Alguns recomendam seguir o Código de Defesa do Consumidor, outros, o Código Civil. Há sugestões para prescrição em três, cinco ou dez anos. O ponto de partida para a contagem do prazo também varia. Há quem defenda que seria 2021, ano que marca do fim do julgamento no STF. Outros falam que seria o momento em que a empresa ganhou a causa na Justiça.
Em nota enviada à Folha, por exemplo, a Light afirmou que “considera o maior prazo prescricional possível, permitindo o repasse aos consumidores retroativo a dez anos antes da decisão do STF, sem que sejam necessárias ações individuais”.
“As empresas não se opõem à transferência dos créditos, mas precisamos discutir se houve prescrição no prazo para o consumidor reclamar, e qual seria, então, esse prazo, porque a devolução dos créditos não será integral”, afirma o diretor presidente da ABCE (Associação Brasileira de Companhias de Energia Elétrica), que reúne empresas de distribuição, transmissão e geração.
Em resumo, há diferentes argumentações que buscam o mesmo fim: garantir os créditos às distribuidoras.
Tributaristas ouvidos pela reportagem, que preferem não ter os nomes citados, explicam que, como é de praxe em matéria tributária, a maioria das distribuidoras até já registrou o ganho total com os créditos tributários em seu balanço quando ganhou as ações na Justiça, o que elevou as suas receitas, e o lucro, na ocasião.
Cada vez que os créditos são utilizados na conta de luz, ocorre o inverso: é preciso considerar o valor como uma despesa, o que reduz o resultado financeiro. Existe, então, um xadrez contábil para o uso desses créditos dentro de cada empresa.
Entre as distribuidoras, há até uma certa insatisfação com o fato de a Aneel ter assumido o debate.
“A posição da agência nessa discussão não é adequada”, afirma Madureira, da Abradee. “Essa questão não é regulatória, o escopo de uma agência.”
Manifestações da Aneel foram contrapondo as alegações das distribuidoras. A procuradoria da agência, por exemplo, em parecer proferido em março deste ano, entendeu que os créditos pertencem integralmente aos consumidores.
É a mesma leitura do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), que acompanha o debate.
“O consumidor pagou o valor a mais, então é ele que deve receber, e a Aneel, como regulador, claro, analisar a pertinência de cada demanda”, diz Anton Schwyter, coordenador do Programa de Energia e Sustentabilidade do Idec.
O advogado Lorenço Moretto, do jurídico do Idec, reforça o parecer da procuradoria da Aneel.
“A prestação do serviço público de fornecer a energia é atividade do Estado, transferida a uma concessionária, que se compromete a oferecer o melhor serviço pelo menor preço, então, um de seus deveres é promover a modicidade tarifária”, diz ele.
“Uma concessionária de energia não pode se comportar como uma Casas Bahia ou um Pão de Açúcar, que são companhias privadas.”
O presidente da Abradee, Marcos Madureira, afirma que essa avaliação está equivocada. “A distribuidora não tem obrigação de entrar na Justiça, o que elas fizeram foi uma iniciativa própria que precisa ser reconhecida na sua totalidade.”
Madureira afirma que, se a agência não reconhecer o direito das distribuidoras aos créditos, a discussão vai para a Justiça.
A Abradee, em paralelo, também quer aproveitar a tramitação do projeto de lei 1.143 no Congresso para normatizar um prazo para ressarcimento de créditos tributários nesse tipo de discussão.
O relator da matéria, deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), já tomou conhecimento da polêmica. Diz que, com a volta do trabalho presencial na Câmara, vai estabelecer um amplo debate em torno dos temas sensíveis. “Há muito dinheiro e muitos interesses envolvidos, e precisamos ouvir todas as partes.”
Na avaliação do advogado André Edelstein, especialista em energia que não atua com nenhuma parte dos envolvidos na discussão, a polêmica exige uma análise profunda, o que explica a demora da Aneel em bater o martelo. “O crédito foi gerado, e é razoável que seja revertido a quem pagou o tributo, o consumidor”, diz ele.
Mas Edelstein argumenta que é justo reconhecer o papel das distribuidoras.
“Estamos discutindo o que fazer com os ganhos dos processos, mas elas assumiram um risco de sucumbência altíssimo, poderiam ter perdido e pago a conta sozinhas”, afirma.
“Uma das atribuições da Aneel é propiciar o equilíbrio, e ela terá de observar todos os pontos.”
*Link da matéria: https://bit.ly/3rAl6bK