Leilão de capacidade: novos produtos, mais segurança

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Leilão de capacidade: novos produtos, mais segurança

Leilão de capacidade: novos produtos, mais segurança

Postado em: 08/04/2022

Contratar potência e energia de forma separada será a regra para o futuro, primeiro certame dessa modalidade deixa aprendizados e indica que aprimoramentos são necessários para ampliar oferta evitar questionamentos judiciais

Maurício Godoi

O ano de 2021 foi, sem dúvida, marcado por situações nada ortodoxas no setor elétrico, principalmente no segundo semestre. O país passou pela maior crise hídrica de sua história, houve a criação de ações de combate à escassez hídrica por meio da geração fora da ordem de mérito por prazo estendido, estabelecimento de uma nova bandeira tarifária e um leilão emergencial para a contratação de térmicas por três anos como outra medida adicional. Ao mesmo tempo o governo preparava o primeiro leilão de reserva de capacidade, este na rota do planejamento ordinário do setor como a primeira iniciativa de contratação separada de lastro e energia.

Tudo corria dentro do esperado nesse campo onde o país tem tradição – a realização de leilões – quando empreendedores recorreram à Justiça para poder disputar o certame de reserva de capacidade com base em liminares. E com essa autorização em mãos foram e venderam uma fatia de 17,4% do total contratado pelo governo. Foram sete usinas com CVU acima dos R$ 600/MWh estabelecidos em edital. A óleo combustível B1 e óleo diesel com valores variando de R$ 1.050/MWh a R$ 2.050/MWh.

Contudo, no primeiro dia de abril o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a validade da regra estabelecida pelo Ministério de Minas e Energia. A decisão de mérito em mandados de segurança impetrados pelas empresas Candeias, Potiguar e Gera Maranhão revogou aquelas liminares do próprio STJ, que garantiram a participação das geradoras no certame. Logo em seguida a Aneel invalidou a habilitação desses agentes. Apesar do mérito ter sido julgado ainda há perspectivas de novos recursos, inclusive, essa demanda poder ser questionada até no Supremo Tribunal Federal.

A impetração de uma ação na Justiça foi apenas o mais latente e polêmico ponto que ficou dessa primeira experiência na chamada separação entre lastro e energia, ou capacidade e energia (apesar de não ter ocorrido lance para esse segundo item).

A opinião dos especialistas ouvidos pela Agência CanalEnergia é de que entre os aprendizados que ficaram para o próximo certame, que deverá ocorrer no final de novembro, inclui dois pontos principais: 1-ter regras mais claras e bem definidas para evitar essas “surpresas” e; 2-ampliar a oferta de produtos para outras fontes, notadamente a hidrelétrica.

Em geral, a avaliação é de que o leilão foi bem-sucedido, apesar dos percalços jurídicos, pois o governo contratou toda a demanda pretendida no quesito potência.

Segundo Erik Rego, diretor de Estudos de Energia Elétrica da Empresa de Pesquisa Energética, a opção pelas térmicas deu-se em função da característica despachável dessa fonte que tem a potência como característica. Ele ressalta ainda que todo o processo foi permeado de novidades no país apesar de tudo o que foi visto.

E o que fica para os próximos eventos dessa natureza é justamente que o país daqui para frente contratará potência de forma contínua. Seja por conta desse mecanismo ou com a alteração do marco regulatório do PL 414 que está na Câmara dos Deputados. Mas, em sua análise, o modelo do leilão de 2021 e o que se prevê para 2022 representarão apenas uma transição para o que deveremos ter depois do projeto de modernização estar em vigor.

Fonte hídrica pode ser a novidade para este ano no leilão de capacidade. Ainda há tempo para incluir no certame previsto para novembro.

Erik Rego, da EPE

“Enquanto não aprovar o PL essa é a ferramenta que teremos para a contratação da necessidade de potência que é indicada no PDE 2031 que não aponta o resultado mas que há a necessidade de continuidade para o longo prazo”, afirma ele.

Um outro ponto que ainda poderemos ver no próximo leilão é a participação de outras fontes além da térmica, mais notadamente a hídrica. Até porque, o país possui perspectivas interessantes ao se considerar apenas os poços vazios de UHEs já existentes. São cerca de 6 GW que poderiam disputar o certame. “Temos trabalhado nesse sentido e encaminhamos ao MME a nossa leitura sobre o tema e acredito que a intenção seja a de que as hídricas sejam incorporadas ao leilão de reserva de capacidade, todos querem”, revela. “Espero que dê tempo de emplacarmos ainda esse ano a fonte hídrica, ainda é possível”, acrescenta.

Nesse sentido, destaca Rego, no campo da fonte hídrica as usinas reversíveis podem ser um importante aliado no quesito potência. Tanto que a EPE já diz ter conversado com empreendedores e desenvolvido estudos que demonstram a possibilidade dessa modalidade estar inserida dentro desse ‘pacote hídrico’ no LRC.

Baterias ainda estão com preço muito elevado para serem uma alternativa no LRC 2022

As baterias químicas estão em avaliação, mas o preço ainda impede sua participação neste ano. As demais fontes até poderiam estar presentes no leilão, mas com um foco maior no produto energia e não potência. “O caminho para as renováveis está mais centrado no mercado livre que deve ser o seu terreno natural”, sentencia.

O presidente da Thymos Energia, João Carlos Mello, destaca a importância que este certame teve para o Brasil, uma vez que está mais claro que o caminho das renováveis é imbatível no mercado livre, ambiente que contrata com base no menor preço. Ele afirma que a expansão da energia no país já está dada por meio dessas fontes. Agora a questão que deve ser observada é justamente a confiabilidade do suprimento e isso se dá com fontes despacháveis.

Nesse sentido temos a necessidade de contratar basicamente a fonte térmica e a hídrica. As duas que mais agregam potência ao sistema. Ele defende que o governo deve colocar nos próximos leilões dessa natureza mais produtos e que não deveria ser discriminada nem mesmo as térmicas a óleo. E ainda, trazer mais visibilidade ao cálculo dessa capacidade que o país precisa. Sobre os produtos ele diz:

Sobre as reversíveis o executivo da Thymos aponta que locais com muita queda seriam os ideais. Além disso, inserir esse tipo de ativo no Nordeste é um caminho que pode ser seguido por conta da alta presença de eólica e solar. E lembra que o leilão de capacidade instaurado pela lei 14.182 poderá ser interessante ao prover o país com capacidade e energia dos 8 GW em térmicas a gás com 70% de inflexibilidade.

Jairo Terra, consultor de Assuntos Regulatórios da PSR, também avalia como positivo o resultado apesar de classificar o certame como tendo uma aparência de que foi feito às pressas. Uma das críticas está calcada na baixa diversidade de produtos e prazos reduzidos, bem como a falta de isonomia ao limitar produto à fonte térmica. E cita a justamente o caminho dos poços vazios em UHEs.

“Essa é uma possibilidade interessante porque teria um preço relativamente baixo e colocaria mais competição no leilão”, avalia. “Os preços do LRC poderiam ter vindo muito mais baixos”, acrescenta. Outra crítica está centrada na participação de usinas existentes que não precisavam remunerar capital e estão com investimentos amortizados. “O caminho é deixar as fontes brigarem entre si”, sugere.

Faltou isonomia ao primeiro certame de capacidade, a fonte hídrica poderia trazer os valores dessa disputa para baixo.

Leilão precisa de aprimoramentos, mas foi positivo.

Jairo Terra, da PSR

Outra possibilidade atribuída ao LRC corrobora a avaliação da EPE de que as UHEs reversíveis são uma das soluções para a contratação de potência. Mas alerta que sua competitividade depende muito da necessidade do sistema e por isso tem que ser bem desenhado o produto. Para as baterias essa mesma avaliação é válida.

O consultor da PSR aponta que a questão de entrada das térmicas estranhas ao edital deveu-se pela má especificação do produto em edital. E ao invés de sinalizar o CVU seria necessário indicar especificamente a fonte. Para ele o grande problema que houve está na equação de horas que as usinas deveriam gerar. A previsão de despacho estava muito baixa e como o custo fixo de térmicas a óleo é mais baixo que a gás, no total da conta essas usinas se mostravam viáveis, tanto que confirmaram os contratos. “Mesmo com CVU maior acabaram oferecendo um valor final mais baixo”, destaca.

Edvaldo Santana, sócio da Neal Negócios de Energia, lembra que o certame foi realizado em meio a uma forte pressão por conta da crise hídrica de 2021 e as incertezas que rondavam o setor elétrico. Para ele, por ser o primeiro certame dessa natureza, o resultado foi positivo. Mas que agora é necessário que sejam efetuados diversos aprimoramentos. Ele reforça que um dos primeiros é a calibração da fórmula de quantas horas as térmicas deverão gerar por ano.

Ele concorda com a avaliação de Terra, que o número de horas aplicado foi baixo e com isso houve e espaço para o questionamento na justiça, pois no final das contas essas térmicas se mostraram competitivas. Por isso, Santana, que é ex-diretor da Aneel ressalta a necessidade de que as regras sejam claras e bem definidas.

Primeira alteração deve ser feita em como se publica a fórmula de despacho no edital e outro é ampliar o volume de produtos a serem ofertados.

Edvaldo Santana, da Neal

“Esse cálculo deve ser aprimorado para tentar contratar térmicas, mas de uma forma mais competitiva”, afirma. “Nessa modalidade de leilão só podemos contar com térmicas flexíveis e usinas hidrelétricas, inclusive as reversíveis, pois estas representam bem a reserva de capacidade para usar quando necessário ou na hora de ponta”, descreve.

Mas comenta ainda que é preciso verificar o nível de preços do gás natural no futuro para ver se a UHE reversível ou até mesmo as baterias serão viáveis. Por outro lado, o preço dos combustíveis fósseis também pode ser o indutor dessas tecnologias caso seu patamar continue em expansão.

Disputa de teses

O Ministério de Minas e Energia criticou em nota a presença de usinas a óleo e a diesel que participaram do leilão de potência e acabaram viabilizando contratos. De acordo com o MME, em 16 anos de leilão os agentes solicitaram algo inédito: que houvesse exigência de limite para o Custo Variável Unitário, em detrimento do interesse do consumidor e da política pública defendida. A consequência disso é que o custo para o consumidor poderá chegar a casa dos R$ 22,6 bilhões.

O cálculo do ministério considerou um cenário em que na vigência do contrato de 15 anos essas usinas sejam demandadas durante quatro meses por ano. Contudo na fórmula do leilão o tempo de despacho era bem menor do que esse, o que resultou na alta competitividade das térmicas a óleo.

Para Alexei Vivan, presidente da ABCE, a realização dessa modalidade de leilão é bem vida. E classifica a preocupação do governo como legítima. Cita a perda de capacidade de controle por conta da expansão exponencial das renováveis que tem como característica a intermitência, apesar de serem baratas. “Acontece que com o tempo a tendência é de perdemos potência e então temos sim que endereçar a preocupação em termos lastro para trazer confiabilidade”, comenta.

Questionamento pode chegar até o STF a depender da estratégia dos agentes que foram prejudicados com a decisão do STJ.

Alexei Vivan, da ABCE

Ele, que é presidente da associação e atua como advogado, lembra que precisamos aprender a ter regras com clareza. “Um edital mais elaborado ajuda a evitar esse tipo de dúvida na qual os agentes entraram com liminar para participar. Alguma coisa estava errada com as regras, pois havia brecha”, destaca. E dependendo do caminho que os agentes excluídos optarem essa discussão poderá chegar sim ao STF, desde que seja algo relacionado à Constituição Federal.

Para o sócio do Lefosse Advogados na área de energia, Raphael Gomes, independente de quem possa estar certo nessa disputa um fato existe: a liminar traz insegurança jurídica ao setor como um todo, pois em um determinado nível significa que o edital foi rasgado. E agora, três meses depois vem uma decisão, revoga a liminar sendo que o certame já aconteceu, empresas investiram recursos e não saíram vencedoras porque houve quem entrou de forma indevida.

Para o advogado, uma saída seria a de realizar até um novo leilão ara corrigir a situação, chamando todas as empresas habilitadas anteriormente. Essa solução inclusive, foi citada por André Patrus, gerente executivo da Secretaria Executiva de Leilões da Agência Nacional de Energia Elétrica.

Ele disse à época do certame, depois da sua realização que “Há possibilidade de convocar outros participantes desse leilão ou abrir espaço para uma nova contratação”. E ainda, que em caso de necessidade de novo leilão, ele pode ser feito no primeiro semestre do ano que vem, para que se cumpra o atendimento no segundo semestre de 2026.

Gomes acrescenta ainda que se o tema avançar com o tempo e não ter uma decisão, em nome da segurança jurídica, deve-se ao extremo anular o leilão, pois isso não é matéria de liminar. Os agentes entram com perdas e danos e refaz-se a disputa. O que não pode é deixar que uma liminar traga incertezas para o quanto precisa contratar em um leilão um ano depois do primeiro.

“Acho que é difícil evitar questionamentos na Justiça, em termos de teses há argumentos de ambos os lados”, afirma. “Na minha opinião temos que pensar em como as decisões são dadas, o judiciário precisa entender melhor como ele olha temas importantes em um segmento tão regulado quanto é o elétrico”, avalia o advogado.

A possibilidade de anular o leilão vai contra o que defendeu o presidente executivo da Associação Brasileira Geradoras Termelétricas, Xisto Vieira Filho em artigo publicado no CanalEnergia e coescrito com o ex-diretor do ONS, Hermes Chipp. O executivo destaca que a maior parte do certame foi composto de agentes que estavam enquadrados dentro das regras. E mais, assim como as liminares, a percepção seria de insegurança jurídica para aqueles que se enquadraram de forma regular, uma vez que a prática poderia espalhar para outras modalidades de leilões.

“Muito mais racional seria aprovar o resultado do leilão para os investidores que atenderam o edital, e debater juridicamente com os agentes que não atenderam. Dessa forma, não prejudicaria os agentes vencedores, não traria insegurança jurídica e não macularia um evento deste nível de importância para o setor elétrico brasileiro”, escreveu o executivo que está à frente da Abraget.

““Muito mais racional seria aprovar o resultado do leilão para os investidores que atenderam o edital, e debater juridicamente com os agentes que não atenderam.”, Xisto Vieira Filho, da Abraget

Na análise de Erik Rego, da EPE, uma lição que fica é a de que quando não se quer a fonte o caminho é indicar nominalmente qual combustível estaria apto a entrar.

Vivan, da ABCE, destaca ainda que o mecanismo desse leilão é importante, representa a pretendida separação de lastro e energia, tanto que está previsto no PL 414, é um novo mercado para os agentes. Inclusive com a adoção de serviços ancilares podendo enquadrar essa contratação.

No fim, o que se busca, disseram os especialistas é adequar a segurança de abastecimento de energia e ter a segurança, que tem o seu preço, mas que bem calibrado compensa ao reduzir subsídios e outros custos adicionais emergenciais.