ABCE na Mídia
Reportagem especial: Abertura total do mercado: Congresso Nacional é o melhor caminho
Postado em: 06/06/2023
Entre a via infralegal, permitida por lei, e o PL 414 a segunda alternativa é a mais citada como viável para o setor, mas discussões estão paradas e há quem diga que poderá ficar para 2027O mês de junho acabou de começar e com ele seguem as incertezas quanto ao avanço do mercado livre para a baixa tensão. Enquanto os preparativos para a abertura da alta tensão dada pela Portaria 50 do Ministério de Minas e Energia no ano passado caminham, a discussão para o acesso mais amplo travou. Nos primeiros cinco meses da atual gestão a discussão está centrada em outras frentes. A renovação das distribuidoras e a exploração da margem equatorial são as de maior destaque. Nem mesmo na Câmara dos Deputados o PL 414 dá sinais de voltar à pauta tão cedo, este projeto que foi aprovado no Senado Federal e havia sinalizações de que iria ao Plenário no primeiro semestre de 2022.
No final do ano passado a medida infralegal assinada pelo ex-ministro Adolfo Sachsida liberou a entrada de cerca de 106 mil novos consumidores no mercado livre de energia a partir do próximo mês de janeiro. Este foi um segundo passo no caminho da liberalização do ACL, o primeiro veio em 2018 com a redução progressiva dos limites de carga de consumidores e o final da figura conhecida como consumidor livre especial, liberando a aquisição de energia da fonte convencional ou incentivada por qualquer um com carga a partir de 500 kW.
A avaliação de agentes e de analistas é de neste momento não se mexerá nesse assunto tão cedo. Isso justamente em decorrência das prioridades do governo Lula 3 que passa por questões políticas como a necessidade de um arcabouço fiscal, a organização do governo com a MP 1154, aprovada essa semana no limite do prazo regulamentar, reforma tributária e outras discussões que vêm tomando a agenda do Legislativo e do Executivo.
Por essa razão, na melhor das hipóteses a tendência é de que a abertura do mercado livre para a baixa tensão poderá ficar para o final do segundo semestre e escorregar até para o ano que vem. Se isso ocorrer, coloca mais pressão naquele calendário estimado no PL 414 de que a abertura pudesse começar em 2026. Há quem considere que essa liberalização poderia ficar até mesmo para 2027, para o próximo governo.
Antes de entrar na parte técnica vem a política. Para que se entenda o momento, disse o cientista político Leandro Gabiati, da Dominium Consultoria, é necessário avaliar o clima em Brasília. Ele lembra que o governo Lula 3 é uma administração com uma forte dependência das forças políticas, não tem a maioria do Congresso e por isso cada tema depende de muita negociação. Sendo assim, publicar uma portaria como foi feito no ano passado é uma questão delicada, pois pode passar o recado ao Legislativo que ele, Executivo, quer tomar a frente das ações.
*O governo sabe que não pode impor uma medida infra legal porque o Congresso Nacional quer participar das decisões referentes a políticas públicas. – Leandro Gabiati, da Dominium Consultoria.*
“Antigamente o Executivo falava em um patamar acima do Legislativo. Isso mudou de uns anos para cá. Os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado falam no mesmo nível que o presidente da República. Se há a percepção de que o governo tenta dar um bypass em um determinado tema por meio de medida infralegal, via portaria ou decreto, é possível de que haja uma reação do Congresso, pois os parlamentares querem que as políticas públicas passem pelas casas”, analisou ele.
Gabiati lembra que há outras agendas do setor que são dominadas por interesses específicos e que estão à frente do PL 414. Ele cita os marcos regulatórios da geração distribuída e da eólica offshore. Outro com potencial para ocupar essa mesma condição é o hidrogênio verde, mas não é para agora. “É difícil ter três ou quatro pautas do setor elétrico ao mesmo tempo no Congresso. É um mercado dominado pela parte técnica e sem apelo popular. Ainda mais quando se tem disputas acerca da geração distribuída em discussão, um assunto que abre a possibilidade de uma energia mais barata. Na minha opinião a GD deveria entrar no âmbito do PL 414, pois sabemos que ao mexer em uma regulação do setor altera outra, então seria importante discutir tudo em um único bloco”, acrescentou.
Além disso, continuou, além de representar uma visão tanto de Estado quanto do Congresso, endereça pontos importantes como a separação entre lastro e energia ou a atividade comercial da atividade de redes das concessionárias de distribuição de energia. Outros pontos relacionados são a criação do encargo de migração, o tratamento aos legados, a questão da autoprodução, entre outros que foram revelados ainda no mês de fevereiro de 2022.
Mário Menel, presidente do Fase e da Abiape, lembra que a maioria do setor é favorável ao mercado livre, pois este traz um sinal econômico mais interessante. Contudo, lembra que atuar para uma abertura segura desse ambiente é importante. Os comandos legais existem, mas questões como os contratos legados são importantes de serem definidas. Além disso, concorda que o momento político é de dificuldades, com o Congresso Nacional avaliando matérias importantes.
*Investidores preferem o caminho que traz mais segurança jurídica e esse é via PL 414. Mas se demorar muito para caminhar, corremos o risco de ter um projeto de modernização desatualizado. – Mário Menel, da Abiape*
“Já faz tanto tempo que estamos discutindo essa modernização do setor que corre o risco de que quando o projeto for aprovado ele esteja desatualizado”, comentou Menel, que acrescentou ainda que o relator Fernando Coelho Filho (DEM-PE) aguarda uma sinalização do governo atual para que o projeto volte a andar. E isso é um fator importante porque se ele for contra a política da atual administração pode existir conflito, e assim, mais dificuldades.
Segundo o executivo, na visão dos investidores a preferência de caminho para a abertura é aquela via que traga mais segurança jurídica. “Lido com investidores na Abiape e o que tenho visto é que o caminho legal é o preferido por atribuir maior segurança do que um decreto ou um ato do Executivo que pode perder sua vigência. Uma lei tem que passar pelo Congresso e é muito mais difícil de ser mudada do que um ato infralegal”, destacou. Menel estima que qualquer movimentação deverá mesmo ocorrer em 2024, pelo menos é o sentimento do atual momento.
O presidente executivo da Abraceel, Rodrigo Ferreira, lembra que o mercado livre vem crescendo e que há vantagens para o consumidor de energia com a abertura total do mercado. Um estudo apresentado pela entidade calcula que a economia seria de R$ 35,8 bilhões ao ano para a baixa tensão no ACL. Isso não inclui os valores de subsídios que seriam retirados da CDE. Ele defende qualquer um dos caminhos para que essa medida fosse tomada. Inclusive ele lembra que uma das prioridades da atual gestão, que é a renovação das concessões deveria envolver a abertura de mercado, uma vez que a questão comercial passa pelas concessionárias.
“Sabemos que a pauta do MME está focada na renovação das concessões das distribuidoras. Defendemos que não deveríamos discutir essa medida que envolve contratos de 30 anos sem tratar do ambiente comercial do setor. É necessário tratar da previsibilidade, de separação do fio e da energia e também do open energy”, ponderou o executivo.
*Estudo calcula que a economia seria de R$ 35,8 bilhões ao ano para a baixa tensão com a abertura do mercado livre para todos os consumidores. – Rodrigo Ferreira, da Abraceel*
Para Ferreira, não é razoável renovar contrato de concessão sem uma meta de modernização do setor por meio de digitalização ou sem tratar da transição energética, que inclusive é um tema que vem sendo colocado sob os holofotes do atual governo. “Gostaríamos muito que o governo incentivasse o avanço do PL 414, um projeto que endereça assuntos importantes do setor”, sugeriu.
Leonardo Lopes, sócio fundador e diretor comercial da Simple Energy, corrobora que o caminho para a segurança jurídica no tema de abertura de mercado se dá pelo PL que está parado na Câmara dos Deputados desde 2021. Em sua análise, está claro que o atual governo não é proativo no sentido de liberalização do mercado. O passado mostra isso, pois apesar de a lei 10.848/2004 prever a abertura, não houve avanços até 2018.
“Obviamente que estamos apenas no início do sexto mês do governo atual, é um prazo curto para termos uma visão mais efetiva dos caminhos”, comentou ele. “Mesmo para a alta tensão há questões a serem deliberadas que a própria CCEE apontou e estamos a sete meses desse momento. O agregador de medição, contratos legados e outros temas que já deveriam ter um plano de ação”, lembrou.
Por isso que Lopes se mostra mais cético quanto ao avanço. Ele toma como base o retrovisor do setor elétrico. Lembrou que o governo do PT na sua primeira passagem pelo Planalto, nunca incentivou essa medida. Contudo, afirmou ainda que vivemos outro momento, mas que o governo tem muito a fazer para provar que não tem mais aquela visão de ser contra a livre iniciativa.
O PL, analisou o executivo, resolveria questões estruturais e básicas. Mas alerta que o prazo é exíguo. São cerca de 18 meses para que no início de 2025 comecem as campanhas de conscientização para o início de uma nova era do setor. “Dificilmente abrirá em 2026 por conta das demandas que circulam no Congresso, não é prioridade, ainda mais em 2026 que será ano de eleição presidencial, nenhuma grande decisão ou medida ocorre em ano de eleição. Salvo se exista uma mudança grande não acontecerá nessa gestão a abertura”, projetou.
*Prazo para aprovação do PL 414 e consequente abertura do mercado livre na baixa tensão é apertado, pode ser que fique para 2027, uma vez que 2026 é ano de eleição e uma decisão ou grande medida dificilmente ocorre nesses momentos. – Leonardo Lopes, da Simple Energy*
Outro que acredita na manutenção do cenário atual é o professor Edvaldo Santana, sócio da Neal Energia. Para ele o governo não deverá tratar do tema. “Dificilmente a abertura organizada existirá e não sei se fará falta porque a geração distribuída alcança esse mercado”, apontou. “Quando o governo começa a querer desfazer uma privatização como da Eletrobras, é difícil de acreditar que vai querer que a abertura de mercado seja encaminhada, voltaremos aos primórdios de 2003 quando a ideia era acabar com o mercado livre de energia”, alfinetou ele que já foi diretor da Aneel.
Santana também lembrou que o PL 414 está parado e sem o apoio do governo. Sendo assim, ele acredita ser difícil sair do atual estado de paralisia. Contudo, esse é um contrassenso, pois os preços de energia estão no piso regulatório e deverão manter-se ainda nessa situação por um bom tempo. Ainda mais em um governo que defende a redução das tarifas como forma de melhorar a área Social. Mas, diz que o projeto no Congresso não é o substituto ideal para a modernização do setor.
“Apesar de falar que representa a modernização do setor o PL resolve algumas questões pontais, está muito longe de representar a solução para os problemas, mas é melhor do que não fazer nada”, avaliou. “É um bom projeto para a abertura do mercado”, indicou.
*Quando o governo começa a querer desfazer uma privatização como da Eletrobras, é difícil de acreditar que vai querer que a abertura de mercado seja encaminhada. – Edvaldo Santana, da Neal Energia*
Alexei Vivan, presidente da ABCE, por sua vez destacou que a Portaria 50 não deverá ter alterações, apesar de ter sido uma medida infralegal e que na teoria poderia ser revogada da mesma forma que foi editada. Ele disse não acreditar que haja essa reviravolta. “A abertura da alta tensão é ponto pacificado no Brasil, já foi dado e é uma tendência que existe. Reverter a elegibilidade da alta tensão seria muito mal recebido pelo setor como um todo”, afirmou.
Entretanto, para a baixa tensão a visão que o executivo tem é essa medida não chegará tão brevemente. Isso porque não está entre as prioridades do MME. “Existe uma preocupação que a nosso ver é procedente em relação à sustentabilidade com a migração quando houver a abertura para a baixa tensão. Isso pode aumentar o risco de inadimplência setorial caso a transição não seja feita com cuidado”, opinou.
Para o executivo que é advogado, a discussão da renovação das concessões de distribuição deveria ser tratada de forma apartada da abertura do mercado para a baixa tensão. Isso porque são assuntos com nível de maturidade distintos. Enquanto a renovação dos contratos já é um tema bem discutido e com exemplos que podem ser seguidos, como as diretrizes básicas colocadas para a onda de renovação do passado, a abertura do ACL ainda demanda discussão.
*A abertura do mercado livre para a alta tensão é ponto pacificado, irá ocorrer em janeiro de 2024 apesar de ter sido autorizada via medida infralegal. – Alexei Vivan, da ABCE*
Vivan concorda com os demais agentes, de que o PL 414 seria o melhor caminho para a abertura do mercado. Ali contém ajustes que são importantes para o mercado. E mais, no Congresso Nacional é que se encontra o ambiente para discussão de uma mudança tão profunda à qual o PL se propõe e em um campo estrutural do país.
Outra opinião jurídica favorável à centralização da discussão dessa abertura no Congresso é de Urias Martiniano Neto, sócio de energia do escritório Tomanik Martiniano. Para ele, apesar de a legislação permitir a autorização da abertura do ACL via Executivo, o ideal mesmo é que essa ação ocorresse de forma legal, ou seja, via PL no Congresso Nacional.
“Se o Brasil pretende ser uma economia forte e ter o setor elétrico forte, precisamos falar de abertura total do ACL, não dá para pensar em desenvolvimento sem essa medida”, disse o advogado. “Via projeto de lei a abertura é aplicada com mais robustez, claro que pode ser feito via Portaria, mas a força da lei traz mais robustez a um assunto que é importante e estrutural para o país”, pontuou ele que lembrou de um estudo da Abraceel, divulgado recentemente, que indica que até mesmo a baixa tensão tem condições de migrar para o mercado livre. E ainda, que uma importante parcela da tarifa que o governo pretende reduzir é formada por encargos no mercado regulado.
“Então o que precisa ser revisado não é a migração e sim outros problemas criados ao longo do tempo”, Urias Martiniano Neto, do escritório Tomanik Martiniano.
Acontece que o PL 414, na avaliação da Abradee, perdeu força, mas ainda é considerado como o projeto mais maduro para o setor. O presidente da entidade que representa as distribuidoras, Marcos Madureira, ressalta que as discussões não avançaram mais desde que houve uma quase pauta do projeto no Plenário da Câmara, entre abril e maio do ano passado.
Esse projeto traria não apenas o comando e o cronograma para abrir o mercado livre na baixa tensão, nas também trataria de ações visando a modernização do setor elétrico como um todo e de forma sustentável. E a fotografia do momento não permite ao setor visualizar quando é que poderá ser avaliado na Câmara dos Deputados.
“O setor elétrico vem sendo incorporado a uma série de PLs ou PDLs que de certa maneira traz tratamento diferenciado a alguns grupos, como a GD por meio da lei 14.300, em detrimento de discussões mais fundamentais como a da modernização do setor. É uma pena o tema do PL 414 ficar esquecida enquanto estamos discutindo itens que não têm o mesmo peso e a sustentabilidade do projeto que deriva das amplas discussões travadas durante a CP 33”, lamentou o executivo.
*PL 414 perdeu força no Congresso Nacional, mas ainda é o projeto mais maduro para a modernização do setor elétrico. – Marcos Madureira, da Abradee*
Madureira comentou que colocar a discussão da abertura do mercado livre em meio às discussões da renovação das concessões das distribuidoras não seria o melhor caminho. Apesar de as concessionárias estarem envolvidas diretamente nesse processo, com os legados, ele argumenta que são processos distintos e que há os contratos fechados em 2015, durante a primeira onda de renovações.
“Teríamos dois grupos diferentes em um mesmo segmento, maneiras diferentes de legislar. O que precisamos é ter mecanismos que permitam a modernização do setor de forma equânime para todos”, comentou. “Nesse sentido entre portaria não é melhor que uma lei, ainda mais para um setor de infraestrutura”, finalizou ele.